Tradições
«É uma história digna de se contar. Foi em 1926 no lugar de Aviúges da freguesia de Cepões, concelho de Viseu. Realizava-se naquela quarta-feira, a segunda do mês, o já antigo mercado a que acorriam feirantes de grande parte da Beira Alta, mas principalmente da cintura de Viseu, do vizinho concelho de Sátão e até do longínquo vale de Lafões, lá para baixo, na rota do mar.
Tinha fama o mercado de Aviúges, principalmente para os negociantes de vacas e de suínos.
Há uns tempos, porém, que um certo prurido e mal-estar se sentia e comentava na feira.
Justa ou injustamente, acusava-se a Câmara de Viseu da maneira como era cobrado o imposto do chamado “real”, exigido a todos, mal se abancasse ou fizesse assentamento no terreiro.
Mês após mês, tudo foi decorrendo sem incidentes. Mas naquela manhã, o prurido aumentou e, palavra puxa palavra, sucedeu aquilo com que certamente ninguém contava ao sair de sua casa.
Diz um, não se sabe quem:
– Não há direito! Isto só se resolve assim – vamos para o Sátão!
Ó palavra que foi dita! Como que eletrizados e numa onda todos em volta repetem:
– É isso mesmo! Para grandes males grandes remédios! Vamos para o Sátão.
Primeiro boquiabertos de espanto mas logo a seguir, com ânimo e determinação, todos interrompem os negócios. Levanta-se o enxame da feira e, zumbindo, começa o desfile em direção ao Sátão. São cerca de cinco quilómetros de Aviúges até aos limites dos dois concelhos mas nada se lhes põe à frente.
– Vamos para o Sátão; vamos para o Sátão mesmo.
Alguns que estavam a chegar nem sequer desceram os carregos. Foi só dar meia volta. Sem saberem bem do que se tratava, aceitaram a festa e toca para a frente.
Todos por um e um por todos!
Em breve o recinto estava varrido e quase desocupado. E o longo cortejo, inesperado e colorido, segue, em fila indiana, pelo caminho que conduz ao local escolhido.
Ao “bruá-bruá” da feira segue-se, agora, o alarido de arraial. As campainhas das ovelhas e cabras juntam-se os chocalhos das vacas e os guizos de algumas montadas. Guincham os leitões ao colo dos donos, mugem as vacas dos carros de sebe chamando pelas crias que ficaram em casa. Relincham os cavalos por se verem naquela parada. Orneiam os burros, carregados mas contentes, e até os cães, ao fazerem saltar das urgueiras os coelhos desprevenidos, emprestam, latindo e correndo, animação e côr ao espetáculo.
E o extenso desfile passa informal mas com a envolvência de coisa séria que responsabilizadamente se pensou. (…)
Montados nos seus cavalos bem tratados, lá se destacam os Catrinos de Samorim, os Oliveiras da Cruz, o Carlos Tomás das Rãs, o António Amaral (…) e até, vindos de longe, os Cachetas e o Jacinto Lima de São Pedro do Sul.
É um exército em marcha. Ao vê-lo emergir dos pinhais do Fojo e dos Portos de Brufe, os povos desprevenidos, largam o trabalho, benzem-se e gritam uns para os outros:
– O que será aquilo?
Ainda não seriam onze horas e a vanguarda atinge o limite dos concelhos e, logo a seguir, a pequena povoação, até ali quase desconhecida, é desde então, famosa e em toda a parte falada – O PEREIRO.
Ali, pensam todos, as autoridades são outras e as quezílias antigas não voltarão a repetir-se. E foi realmente assim.
À volta do meio-dia, o grande enxame que levantara de Aviúges estava todo pousado no Pereiro. O “bruá-bruá” voltou a ouvir-se e os negócios, desde o cebolo de plantar até às imponentes juntas de bois a estalar de gordos, todos se faturaram.
Todos tinham de chegar a casa satisfeitos. Era uma questão de brio e de pendor; quase um ponto de honra. (…)
Regada pelo sacrifício, pela determinação e pelo entusiasmo espontâneo e coletivo, a Feira do Pereiro está disposta a continuar, com a afluência e a determinação com que ficou assinalada desde essa manhã ordeira e pacífica mas determinante.
A bonita povoação de Aviúges e o airoso lugar do Pereiro, cujos nomes foram cartazes involuntários deste processo, continuam a estimar-se e a conviver como se nada se tivesse passado, na convicção verdadeira de que o sucedido não foi provocado por nenhum deles mas somente por desinteligência entre o povo anónimo e as entidades administrativas da ocasião».
Texto de Gonçalo L. Rodrigues / Biblioteca Consultada: Livro da Actualidade (1640) da História de Portugal